DOUTRINA DE DEUS – PARTE 03
III. Relação do Ser e dos Atributos de Deus
Alguns dogmáticos dedicam um ou mais capítulos separados ao Ser de Deus, antes de empreender a discussão dos Seus atributos. Isto é feito, por exemplo, nas obras de Mastricht, Ebrard, Kuyper, e Shedd. Outros preferem considerar o Ser de Deus em conexão com os Seus atributos, em vista do fato de que é nestes que Ele se revelou. Este é o método mais comum, seguido na Synopsis purioris Theologiae, e nas obras de Turretino, a Marck, Brakel, Bavinck, Hodge, e Honig. Esta diferença de tratamento não indica nenhum desacordo fundamental sério entre eles. Eles todos concordam em que os atributos não são meros nomes sem nenhuma realidade que lhes corresponda, nem partes separadas de um Deus composto, mas sim, qualidades essenciais nas quais o Ser de Deus é revelado e com as quais pode ser identificado. Ao que parece, a única diferença é que alguns procuram distinguir entre o Ser e os atributos de Deus mais do que outros.
A. O Ser de Deus.
É evidente que o Ser de Deus não admite nenhuma definição científica. Para dar uma definição lógica de Deus teríamos que começar fazendo pesquisa de algum conceito superior, debaixo do qual Deus pudesse ser coordenado com outros conceitos; e depois teríamos que expor as características aplicáveis exclusivamente a Deus. Uma definição genético-sintética assim, não se pode dar de Deus, visto que Deus não é um dentre várias espécies de deuses, que pudesse ser classificado sob um gênero único. No máximo, só é possível uma definição analítico-descritiva. Esta simplesmente menciona as características de uma pessoa ou coisa, mas deixa sem explicação o ser essencial. E mesmo uma definição dessas não pode ser completa, mas apenas parcial, porque é impossível dar uma descrição de Deus positiva exaustiva (como oposta a uma negativa). Constituiria numa enumeração de todos os Atributos de Deus conhecidos, e estes são, em grande medida, de teor negativo.
A Bíblia nunca opera com um conceito abstrato de Deus, mas sempre O descreve como o Deus Vivente, que entra em várias relações com as Suas criaturas, relações que indicam vários atributos diferentes. Na obra de Kuyper intitulada Dictaten Dogmatiek,[1] lemos que Deus, personificado como Sabedoria, fala de Sua essência em Provérbios 8.14, quando Ele atribui a Si próprio tushiyyach, palavra hebraica traduzida pelo termo “wezen” na versão holandesa. Mas esta tradução é muito duvidosa, e a tradução inglesa “conselho” merece preferência. Também se tem assinalado que a Bíblia fala da natureza de Deus em 2 Pe 1.4, mas dificilmente isto pode referir-se ao essencial de Deus pois nós não somos feitos participantes da essência divina. Tem-se visto uma indicação da essência de Deus propriamente dita no nome de Jeová , como interpretado por Deus mesmo nesta expressão, “Eu Sou o que Sou”. Com base nesta passagem, a essência de Deus acha-se em ela ser, abstratamente. E isto tem sido interpretado no sentido de auto-existência ou permanência auto-abrangente ou independência absoluta. Outra passagem repetidamente citada como contendo uma indicação da essência de Deus, e como a que mais se aproxima de uma definição na Bíblia, é João 4.24. “Deus é espírito; e importa que seus adoradores o adorem em espírito e em verdade”. Esta afirmação de Cristo é claramente indicativa da espiritualidade de Deus. As duas idéias derivadas destas passagens ocorrem repetidamente na teologia como designativos do Ser de Deus propriamente dito. Em geral, pode-se dizer que Escritura não exalta um atributo de Deus em detrimento dos demais, mas os apresenta como existentes em perfeita harmonia no Ser Divino. Pode ser verdade que ora um, ora outro atributo receba ênfase, mas a Escritura evidentemente tenciona dar devida ênfase a cada um deles. O ser de Deus é caracterizado por profundidade, plenitude, variedade, e uma glória que excede nossa compreensão, e a Bíblia apresenta isto como um todo glorioso e harmonioso, sem nenhuma contradição inerente. E esta plenitude de Deus acha expressão nas perfeições de Deus, e não doutra maneira.
Alguns dos primitivos pais da igreja, assim chamados, estiveram claramente sob a influência da filosofia grega em sua doutrina de Deus e, como Seeberg o expressa, não foram “além da mera concepção abstrata de que o Ser Divino é uma existência absoluta, destituída de atributos”. Por algum tempo, os teólogos geralmente se inclinavam a salientar a transcendência de Deus e a pressupor a impossibilidade de qualquer conhecimento adequado ou de qualquer definição da essência divina. Durante a controvérsia trinitária, a distinção entre a essência única e as três pessoas da Divindade foi acentuada vigorosamente, mas em geral se entendia que a essência estava além da compreensão humana. Gregório Nazianzeno, contudo, aventura-se a dizer: “Até onde podemos discernir, ho on e ho theos são de algum modo mais do que outros termos ou nomes da essência “divina”, e de ambas ho on é a preferível”. Ele considera esta expressão como descrição do ser absoluto. O conceito de Agostinho sobre a essência de Deus era muito parecido com o de Gregório. Na Idade Média também houve a tendência, ou de negar que o homem tem algum conhecimento da essência de Deus, ou de reduzir este conhecimento ao mínimo. Em alguns casos, um atributo foi isolado como sendo o mais expressivo da essência de Deus. Assim, Tomás de Aquino falava da asseidade ou auto-existência de Deus, e Duns Scotus, da Sua infinidade. Tornou-se também muito comum falar de Deus como actus puru, em vista da Sua simplicidade ontológica. Os reformadores e seus sucessores também falavam da essência de Deus como incompreensível, mas eles não excluíam todo conhecimento da essência, embora Lutero empregasse uma linguagem muito forte sobre este ponto. Eles salientavam a unidade, a simplicidade, e a espiritualidade de Deus. As palavras da Confissão Belga são muito características: “Cremos de coração, e confessamos com a boca, que há um único Ser simples e espiritual, a quem chamamos Deus”.[2] Mais tarde, filósofos e teólogos viram a essência de Deus num Ser abstrato, numa substância universal, num pensamento puro, numa causalidade absoluta, no amor, na personalidade, e na santidade majestosa ou no Numinoso.
B. A Possibilidade de Conhecer o Ser de Deus
Do que acima foi dito já transparece que a questão quanto à possibilidade de conhecer a Deus em Seu Ser essencial ocupou as melhores mentes da igreja, desde os primeiros séculos. E o consenso da opinião da igreja primitiva, durante a Idade Média, e no tempo da Reforma, foi que Deus, em Seu Ser mais recôndito, é O Incompreensível. E, em alguns casos, a linguagem empregada é tão forte que aparentemente não admite nenhum conhecimento do Ser de Deus. Ao mesmo tempo em que a empregam, ao menos em alguns casos, parecem Ter considerável conhecimento do Ser de Deus. Mal-entendidos podem facilmente surgir se não compreender a precisa questão que está sendo considerada, e se deixar de discriminar entre “saber” e “compreender”. Os escolásticos falavam de três perguntas às quais todas as especulações a respeito do Ser Divino podiam reduzir-se, a saber: An sit Deus? Quid sit Deus? e Quali sit Deus? A primeira pergunta refere-se à existência de Deus, a segunda, à Sua natureza ou essência, e a terceira, a Seus atributos. Nesse parágrafo é particularmente a Segunda pergunta que requer atenção. A pergunta, então, é, o que é Deus? Qual a natureza de Sua constituição interna? O que é que faz que Ele seja o que Ele é? Para responder adequadamente essa pergunta, teríamos que ser capazes de compreender Deus e de oferecer uma explicação satisfatória do Seu Ser Divino, e isto é completamente impossível. O finito não pode compreender o Infinito. A pergunta de Zofar, “Por ventura desvendarás os arcanos de Deus ou penetrarás até a perfeição do Todo-poderoso?” (Jó 11.7) tem a força de uma vigorosa negativa. E se considerarmos a segunda pergunta inteiramente desvinculada da terceira, a nossa resposta negativa fica sendo ainda mais inclusiva. Fora da revelação de Deus em Seus atributos, não temos absolutamente nenhum conhecimento do Ser de Deus. Mas, até onde Deus se revela em Seus atributos, também temos algum conhecimento do Seu Ser Divino, embora mesmo assim o nosso conhecimento esteja sujeito às limitações humanas.
Lutero emprega algumas expressões muito fortes a respeito da nossa incapacidade de conhecer alguma coisa do Ser de Deus ou da Sua essência. Por outro lado, ele distingue o Deus absconditus (Deus oculto) e o Deus revelatus (Deus revelado); mas, por outro lado, ele também afirma que, conhecendo o Deus revelatus, somente O conhecemos em Seu ocultamento. Com isto ele quer dizer que, mesmo em Sua revelação, Deus não se manifestou inteiramente como Ele é essencialmente, mas, quanto à Sua essência continua encoberto por impenetrável escuridão. Só conhecemos a Deus na medida em que Ele entra em relação conosco. Calvino também fala da essência divina como incompreensível. Ele sustenta que Deus, nas profundezas do Seu Ser, está fora de alcance. Falando do conhecimento do Quid e do Qualis de Dues, diz ele que é inútil especular sobre o primeiro, ao passo que o nosso interesse prático jaz no segundo. Diz ele: “Simplesmente, brincam com frígidas especulações aqueles cuja mente se fixa na questão do que Deus é (Quid sit Deus), quando o que realmente nos interessa saber é, antes, que espécie de pessoa Ele é (Qualis sit) e o que é apropriado à Sua natureza”.[3] Conquanto ele ache que Deus não pode ser conhecido à perfeição, não nega que possamos conhecer algo do Seu Ser ou da Sua natureza. Mas este conhecimento não pode ser conhecido por métodos a priori, mas somente de maneira a posteriori, mediante os atributos, que ele considera como reais determinativos da natureza de Deus. Eles nos transmitem ao menos algum conhecimento do que Deus é, mas, especialmente, do que Ele é em relação a nós.
Ao tratar do nosso conhecimento do Ser de Deus, certamente devemos evitar a posição de Cousin, particularmente invulgar na história da filosofia, de que Deus, mesmo nas profundezas do Seu Ser, não é absolutamente Incompreensível, mas, sim, essencialmente inteligível; mas também devemos afastar-nos do agnosticismo de Hamilton e Mansel, segundo o qual não podemos ter qualquer conhecimento do Ser de Deus. Não podemos compreender Deus, não podemos ter um absoluto e exaustivo conhecimento dele, mas, sem dúvida, podemos ter um conhecimento relativo ou parcial do Ser Divino. É perfeitamente certo que este conhecimento de Deus só é possível porque Ele se colocou em certas relações com as Suas criaturas morais e se revelou a estas, e que mesmo este conhecimento é humanamente condicionado; mas, não obstante, é um conhecimento real e verdadeiro, e, no mínimo, é um conhecimento parcial da natureza absoluta de Deus. Existe diferença entre um conhecimento absoluto e um conhecimento relativo ou parcial de um Ser absoluto. Não se resolve dizer que o homem só conhece as relações nas quais Deus se mantém para com Suas criaturas. Nem seria possível Ter um apropriado conceito dessas relações sem conhecer alguma coisa de Deus e do homem. Dizer que não podemos saber nada do Ser de Deus, mas que podemos conhecer somente relações, é equivalente a dizer que não podemos conhecê-lo absolutamente e não podemos fazê-lo objeto da nossa religião. Diz o Dr. Orr: “Não podemos conhecer a Deus nas profundezas do Seu Ser absoluto. Mas podemos, ao menos, conhecê-lo até onde Ele se revela em Sua relação conosco. A questão, portanto, não é quanto a possibilidade de um conhecimento de Deus na impenetrabilidade do Seu Ser, mas é esta: Podemos conhecer a Deus procurando saber como Ele entra em relação com o mundo e conosco? Deus entrou em relação conosco em Suas revelações de Si próprio, e, supremamente, em Jesus Cristo; e nós, cristãos, humildemente alegamos que, por meio desta auto-revelação, de fato sabemos que Deus é o Deus verdadeiro, e temos um real conhecimento do seu Caráter e da Sua vontade. Tampouco é correto dizer que este conhecimento que temos de Deus é apenas um conhecimento relativo. É em parte um conhecimento da natureza absoluta de Deus também.”[4] As últimas declarações provavelmente são feitas coma intenção de guardar-se da idéia de que todo o nosso conhecimento de Deus é relativo à mente humana, de modo que não teríamos segurança de que ele corresponda à realidade como ela existe em Deus.
C. O Ser de Deus Revelado em Seus Atributos
Da simplicidade de Deus segue-se que Deus e Seus atributos são um. Não devemos considerar os atributos como outras tantas partes que entram na composição de Deus, pois, ao contrário dos homens, Deus não é composto de diversas partes. Tampouco devemos considerá-los como alguma coisa acrescentada ao Ser de Deus, embora o nome, derivado de ad e tribuere, pareça apontar nessa direção, pois nenhum acréscimo jamais foi feito ao Ser de Deus, que eternamente perfeito. Comumente se diz em teologia que os atributos de Deus são o próprio Deus, como Ele se revelou a nós. Os escolásticos acentuavam o fato de que Deus é tudo quanto Ele tem. Ele tem vida, luz, sabedoria, amor, justiça, e se pode dizer com base na Escritura que Ele é vida, luz, sabedoria, amor, justiça. Os escolásticos afirmavam, ademais, que toda a essência de Deus é idêntica a cada um dos atributos, de modo que o conhecimento de Deus, é Deus, a vontade de Deus, é Deus, e assim por diante. Alguns deles chegaram mesmo a dizer que cada atributo é idêntico a cada um dos demais atributos, e que não existem distinções lógicas em Deus. Isto constitui um extremo muito perigoso. Embora se possa dizer que há uma interpenetração dos atributos de Deus, e que eles formam um todo harmonioso, estamos partindo em direção ao panteísmo quando eliminamos todas as distinções em Deus, e dizemos que a Sua auto-existência é a sua infinidade, que o Seu conhecimento é a Sua vontade, que o Seu amor é a Sua justiça, e vice-versa. Uma coisa característica dos nominalistas é que eles obtiveram todas as reais distinções em Deus. Eles temiam que, ao admitir reais distinções nele, correspondentes aos atributos atribuídos a Deus, eles poriam em perigo a simplicidade e a unidade de Deus, e, portanto, foram motivados por um propósito louvável. De acordo com eles, as perfeições do Ser divino existem somente em nosso pensamentos, sem nenhuma realidade correspondente no Ser Divino. Por outro lado, os realistas afirmavam a realidade das perfeições divinas. Eles compreenderam que a teoria dos nominalistas, coerentemente levada a diante, seguiria na direção de uma panteística negação de um Deus pessoal e, portanto, consideravam da máxima importância sustentar a realidade objetiva dos atributos de Deus. Ao mesmo tempo, eles procuravam salvaguardar a unidade e a simplicidade de Deus defendendo que toda a essência está em cada atributo: Deus é Tudo em todos; Tudo em cada um deles. Tomás de Aquino tinha o mesmo propósito em mente quando afirmava que os atributos não revelam o que Deus é em Si mesmo, nas profundezas do Seu Ser, mas somente o que Ele é em relação às Suas criaturas.
Naturalmente devemos resguardar-nos contra o perigo de separar a essência divina dos atributos ou perfeições divinas, e também contra um falso conceito da sua relação mútua. Os atributos são reais determinativos do Ser Divino ou, noutras palavras, qualidades inerentes ao Ser de Deus. Shedd fala deles como “uma descrição analítica e bem próxima da essência”.[5] Num sentido são idênticos, de modo que se pode dizer que as perfeições de Deus são o próprio Deus como Ele se nos revelou. É possível ir até mais longe e dizer como Shedd, “Toda a essência está em cada atributo, e cada atributo na essência”.[6] E, devido à estreita relação existente entre a essência e os atributos, pode-se dizer que o conhecimento dos atributos leva consigo o conhecimento da essência divina. Seria um erro conceber a essência de Deus como existente por Si própria e anterior aos atributos, como também seria um erro conceber os atributos como características aditivas e acidentais do Ser Divino. São eles qualidades essenciais de Deus, inerentes ao Seu próprio Ser e com Ele coexistentes. Estas qualidades não podem ser alteradas sem alterar o Ser essencial de Deus. E desde que são qualidades essenciais, cada um deles revela-nos algum aspecto do Ser de Deus.
QUESTIONÁRIO PRA PESQUISA: 1. Como podemos distinguir entre o Ser, a natureza, e a essência de Deus? 2. Como as idéias filosóficas sobre o Ser essencial de Deus diferem das idéias teológicas? 3. Que dizer da tendência de ver a essência de Deus no Absoluto, no amor, na personalidade? 4. Que quer dizer Otto quando a caracteriza como “o Santo” ou “o Numinoso”? 5. Por que é impossível ao homem compreender a Deus? 6. O pecado afetou de alguma forma a capacidade humana de conhecer a Deus? 7. Há alguma diferença entre o conceito de Lutero e o de Barth sobre o “Deus Oculto”? 8. Calvino difere deles nesse ponto? 9. Lutero compartilhou as idéias nominalistas de Occam, por quem foi influenciado noutros aspectos? 10. Como os Reformadores, em distinção dos escolásticos, consideravam o problema da existência de Deus? 11. Poderíamos Ter algum conhecimento de Deus, se Ele fosse um Ser puro, destituído de atributos? 12. Que conceitos errôneos dos atributos devem ser evitados? 13. Qual o conceito adequado?
BIBLIOGRAFIA PARA CONSULTA: bavinck, Geref. Dogm. I, p.91-113; Kuyper, Dict. Dogm., De Deo I, p.124-158; Hodge, Syst. Theol. I, p.335-374; Shedd, Dogm. Theol.I, p.152-194; Thornwell, Collected Works, I, p. 104-172; Dorner, Syst. Of Chr. Doct. I, p.1870212; Orr, Chr. View of God and World, p.75-93; Otten, Manual of the Hist. Of Dogmas. I, p.254-260; Clark, The Chr. Doct. Of God, p. 56-70; Steenstra, The Being of God as Unity and Trinity, p.1-88; Thomson, The Christian Idea of God, p.117-159; Hendry, God the Creator (do ponto de vista barthiano); Warfield, Calvin and Calvinism, p. 131-185 (Calvin’s Doctrine of God).
[1] De Deo I, p. 28.
[2] Art. I
[3] Inst, I. 2. 2.
[4] Side-Lights on Christian Doctrine, p.11.
[5] Dogm. Theol. I, p.334.
[6] Ibid., p.334.